Memória Dilatada

Por Ida Mara Freire/ Foto: Clara Meirelles
O lembrar e o esquecer nos tornam humanos, ensina as leituras de Paul Ricoeur. O tempo vivido em lutas, doenças, feridas, traumas cravam na memória corporal povoando-a de lembranças. A recordação, os graus de rememoração vão pouco a pouco preparando a narração a ser escrita, dançada, e por que não gritada. Grito diante da plateia paciente a esperar o espetáculo começar… como provoca Olga Gutiérrez ao encerrar ontem a noite, no Ceart/Udesc, o Festival Internacional Múltipla Dança, que nesse ano apostou na ocupação de vários pontos da cidade, alcançando assim um número aproximado de 1500 espectadores.
Como no sábado, dia 28 de maio, a contemplação de diferentes lugares da Ponta do Coral, sugerida na intervenção urbana, as dançarinas Diana Gilardenghi e Sandra Nunes, compõem com um coral silencioso uma caminhada, a mostrar que nos movemos dentro de uma realidade impregnada de um passado exuberante e de um futuro obscuro, revelado no contraste de cada passo do momento atual, pois, embora não se possa negar a beleza da paisagem , é necessário o uso de máscaras para não se intoxicar com o cheiro ao redor e, o uso de luvas para não se contaminar com aquilo que está a alcance das mãos.
Na noite de sábado, no teatro do Sesc – Prainha, estreia no Múltipla o espetáculo Rec(L)usadx, que se mostra como uma memória episódica dos eventos que escancaram a vulnerável condição feminina que deixa qualquer menina amedrontada. Tendo como espaço de ensaio a sala de sua casa, a dançarina Elke Siedle compõe seu solo para guitarra em Só Maior , sua dança soçobra a plateia na fragilidade nua de ser humana. O tecido vermelho que no início da cena desenha um círculo imperfeito no chão, em um tempo ritual, veste o corpo com requintada fatalidade e dor. A luz que inebria , de súbito estoura, abrindo os olhos do espectador que já não vê mais a dança, mais lê no programa que: “A intervenção estética pela metáfora do excesso de derramamento de sangue expõe a urgência em ressignificar experiências relacionais intersubjetivas.”
No círculo das memórias internas e externas proposto por Rui Moreira, na oficina Danças Negras Contemporâneas, no Studio Afrika, localizado no Canto da Lagoa, na sexta- feira pela manhã, a simplicidade tem o seu lugar garantido, a busca do prazer pela dança é questionada e ampliada pelo compromisso consigo e com o outro. Jussara Belchior, participante da oficina e integrante do Múltipla Escrita, descreve que: “Compartilhar as sensações e reflexões advindas da prática é um jeito de dilatar a memória. No início, Rui Moreira mencionou que o trabalho da memória contava com um pouco de imaginação, ao fim, a imaginação concretiza-se como uma experiência-convite da partilha. Essa experiência, de “danças negras contemporâneas” é, sobretudo, um chamado a refletir sobre as bagagens, os cruzamentos e as potências nas histórias dos corpos.”
Homenagear é também um ato de rememorar, nas palavras de Ana Lúcia Ciscato “receber uma homenagem é sempre muito bom. Reafirma uma trajetória e traz estimulo para a continuação da mesma. Um festival que tem como objetivo a visualização da Pluralidade da dança, homenageando um trabalho que busca a profissionalização de bailarinos considerados com deficiência , mostra que um espaço para dança inclusiva está sendo aberto.” Leitora e Leitor, percebo que vocês não se esqueceram que dançar é também um ato político. E isso é memorável…
Texto publicado no Jornal Notícias do dia: ndonline, 31/05/2016
http://ndonline.com.br/florianopolis/plural/306404-critica-multipla-danca-terminou-no-domingo-enfatizando-que-dancar-e-tambem-um-ato-politico.html