Cartografia da Emoção

Escrita do flamenco: cartografando a emoção
Por Ida Mara Freire Pós-doutorado em dança, Universidade da Cidade do Cabo, África do sul
Fotografia de Natália Cardoso
O leitor e a leitora, provavelmente, já reconhecem que o flamenco emociona por traduzir na intensidade da voz e na sustentação do silêncio no corpo, aquilo que se principia na resignação do vivido e da dor e se desdobra em liberdade, rebeldia e alegria, evidenciando com isso o estilo cigano de entender a vida. Semelhantemente, as 307 pessoas presentes no TAC, na noite de sábado 02 de julho, ao apreciarem o espetáculo “Aire” da Escola de Flamenco Carol Ferrari, constataram como a essência do flamenco consiste em provocar emoções.
Talvez, a plateia tenha notado a combinação das cores de saias e vestidos com suas texturas, babados e estampas peculiares da moda flamenca. Quem não estaria atento aos cabelos impecavelmente arranjados com uma flor ou uma delicada peneita. O espectador interessado na precisão da gestualidade espelhada na eficácia musical, pode ter se surpreendido com o duo no palo dos jaleos, no qual as sapateadoras intercalavam seus passos com as distinguíveis células rítmicas do báston (bengala); ou ainda tenha preferido atentar para a sonoridade vibrante e sútil do cajón, particularizado pela invisibilidade de suas cordas. Diante do desenho coreográfico do baile, assertivamente iluminado por Marcello Serra, o público saboreou o fruto da repetição laboriosa manifesta na criação do espetáculo da única escola do estado, onde Carol Ferrari, Chari Gonzalez e Marília Cartell e Rodrigo Campos se dedicam a ensinar a arte flamenca para um grupo de aproximadamente 60 alunos, incluindo adultos e crianças.
A direção artística assinada por Carol Ferrari confere ao espetáculo Aire uma fidelidade criativa do flamenco, presente em seu vocabulário específico e na clássica estrutura do compás (compasso): o cante vigoroso de Ozir Padilla, os acordes singulares da guitarra de Pedro Perera, e a percussão vivaz do cajón de Rodrigo Campos, acompanhados dos palmeiros e do baile. O percurso geográfico dos estilos musicais delimita os lugares do corpo social que o dançar desencerra: tangos de Granada, tangos de Triana, fandangos de Huelva, Sevillanas. As crianças preenchem o palco festivamente, no ritmo animado característico da métrica dos tanguillos. A exuberância das 14 bailaoras, com suas castanholas demarcam no tempo e no espaço os acentos melódicos dos fandangos, mantendo cativa a percepção do espectador.
Se atentarmos para as letras das músicas, escutaremos, no solo dançado por Marília Cartell, um palo de alegrías, repertório de criação cigana, que fala do lugar que se vai para obter o que se busca. No solo da bailaora Chari Gonzalez, um palo de tarantos, o movimentar de seu corpo, seus passos aterrados no chão, a temporalidade vertida das palmas de suas mãos, configuram a canção lamentosa da vida bruta dos trabalhadores das minas, para quais as estrelas da alva escurecem e, em vão parecem esperar a luz que surge do amanhecer.
“O espetáculo Aire foi realizado por aprendizes e por profissionais, pessoas cheias de coragem e força,” comenta Carol Ferrari, ao definir a palavra que fala sobre a expressividade tão peculiar ao flamenco: Aire, que transforma a dança transformando quem dança, que faz descobrir no palco potencialidades que se leva para a vida, e descobrir na vida coisas que se leva para o palco. Aire que une e mostra no corpo a cartografia da emoção.
Texto Publicado 15/07/2016, no site NDonline, Caderno Plural do Jornal Notícias do Dia.