A noção de liberdade em Hannah Arendt: apontamentos para a teologia contemporânea

Foto Ida Mara Freire Campeche

Resenha:
Por Ida Mara Freire
Somos livres? Temos livre-arbítrio? Se Deus exerce controle providencial sobre todos os eventos, será que em algum sentido somos livres? A resposta depende do que queremos dizer com a palavra ‘livre’. Em certos sentidos da palavra, todos concordam que somos livres na nossa vontade e nas nossas decisões.   Mas, quando estamos falando de se temos ‘livre-arbítrio’, é relevante esclarecer o que a palavra significa, como sugere Wayne Grudem (2010), em sua Teologia Sistemática.
E foram esses questionamentos que deparei-me ao estudar os conteúdos do módulo Teologia Contemporânea, ministrada pelos professores Marcos Granconato e Gaspar de Souza.   Concordo que foi esclarecedora a adoção de uma perspectiva histórica, e o destaque de teólogos representantes de distintas teologias, seus desdobramentos e implicações, para compreendermos o contexto religioso nos dias atuais. Especificamente, foi na aula do professor Gaspar de Souza, cujo objetivo foi apresentar o desenvolvimento da teologia do século XX em duas correntes contemporâneas, que o tema da liberdade chamou mais a minha atenção, principalmente quando o professor desvelou como esse conceito, presente na teologia relacional do Teismo Aberto, tem suas raízes na noção de liberdade na filosofia grega de Platão e Epicuro.
Nesta resenha, pontuo a noção de liberdade, na história da filosofia, tendo como referência a pensadora Hannah Arendt, também comparo brevemente as tendências do libertismo e do compatibilismo. Concluo, com a interpretação da passagem do Evangelho de Lucas 6:27-31, como um exercício que não abre mão no fazer teológico, da metafísica, da epistemologia e da ética.
Nos rastros da história da filosofia, perscruto na obra de Hannah Arendt, A vida do Espírito, a ‘proairesis’, a faculdade de escolha, como a precursora da vontade, atentando o que há em comum entre Aristóteles e Kant, a filósofa escreve que: “A liberdade torna-se um problema, e a Vontade como faculdade autônoma é descoberta somente quando os homens começam a duvidar da coincidência entre ‘tu-deves’ e ‘eu-posso’, quando surge a questão: As coisas que só a mim dizem respeito estão em meu poder?” (1992:233)
Para explicitar esse tema, recorro-me ao item ‘Liberdade e Determinismo’, no livro ‘Filosofia Concisa’, de autoria Garet J. DeWeese e J.P. Moreland (2011), no qual, os autores apresentam , de um lado, os libertistas que adotam uma concepção do livre-arbítrio incompatível como o determinismo, e do outro, os compatibilistas que afirmam que a liberdade e o determinismo são compatíveis entre si, nesse caso, a verdade do determinismo não elimina a liberdade.   Em suas análises da diferença entre libertistas e compatibilistas, os autores discorrem acerca de três áreas de comparação: a condição da capacidade, a condição do controle, e a condição da racionalidade.
A condição da capacidade. Os compatibilistas veem essa capacidade a partir de uma posição hipotética, por exemplo, somos livres para escolher o que quer que desejamos, ainda que nossos desejos sejam determinados. A liberdade é poder agir conforme sua preferência mais forte. Os libertistas veem a capacidade hipotética como uma escamoteação e como insuficiente para a liberdade necessária para a ação responsável. Segundo os libertistas, a verdadeira questão não é se somos livres para fazer o que queremos, mas, se somos livres para querer. Um ato livre é aquele em que o agente é a fonte originária última do ato. A liberdade requer que tenhamos a capacidade categórica de querer agir.
A condição de controle. Os campatibilistas, entendendo que causa e efeito são caracterizados como uma série de eventos que compõe uma cadeia causal, cujos eventos prévios aliados às leis da natureza causam eventos posteriores. Assim, de acordo com o compatibilismo, um ato é livre somente se estiver sob controle do agente, e isso acontece somente se a cadeia causal de eventos atravessar o próprio agente de maneira adequada. Os libertistas rejeitam essa teoria causal da ação e a noção compatibilista de controle e alegam que é necessária outra compreensão de controle para que a liberdade exista. Para os libertistas, um agente precisa ser a fonte originária e absoluta de suas próprias ações para que possa estar no controle.
A condição da racionalidade. A condição de racionalidade requer que o agente tenham uma razão pessoal para agir antes que o ato seja considerado um ato racional livre. No compatibilismo, as razões são as causas eficientes, isto é, são aquilo por meio do qual um efeito é produzido. Vale observar que nesta concepção, o agente não faz nada; ele é simplesmente um contêiner de crenças e desejos; deste modo, não há opções, apenas acontecimentos. No libertismo, as razões são um objetivo final; isto é, aquilo em função do qual um efeito é produzido. Elas são um estado futuro desejado.
Essas questões tem uma relação direta com os debates teológicos sobre a liberdade da vontade. Como já notamos a filósofa Hannah Arendt (2000), que em sua argumentação avizinha a vontade com a liberdade, continua examinar que “ao lidarmos com experiências relevantes para a Vontade, estamos lidando com experiências que os homens têm não só entre si, mas também dentro de si mesmos”.   Arendt ancora esse argumento com a descoberta do apóstolo Paulo, a experiência interna, a experiência do eu-quero-e-não-posso, que ele descreve detalhadamente na Epístola aos Romanos, onde lemos no capítulo 7:19 – “Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço.” – Essa experiência, seguida de uma experiência da misericórdia de Deus, é para ele avassaladora.
Ainda na trilha da história da filosofia, seguimos com Hannah Arendt, agora, em seu texto ‘O que é a liberdade?’ A filósofa judia-alemã, vai atribuir à Agostinho, o grande pensador cristão, a introdução a noção do livre arbítrio do apóstolo Paulo, na história da filosofia. No entanto, Agostinho, não só discute a liberdade como liberum arbitrium, como também, concebe a liberdade não como uma disposição humana íntima, mas como um caráter da existência humana no mundo. Ela escreve: “Não se trata tanto de que o homem possua a liberdade como de equacioná-lo, ou melhor, equacionar sua aparição no mundo, ao surgimento da liberdade no universo; o homem é livre porque ele é um começo e, assim, foi criado depois que o universo passara a existir: [Initium] ut esset, creatus est homo, ante quem nemo fuit. No nascimento de cada homem esse começo inicial é reafirmado, pois em cada caso vem a um mundo já existente alguma coisa nova, que continuará a existir depois da morte de cada indivíduo. Porque é um começo, o homem pode começar; ser humano e ser livre são uma única e mesma coisa. Deus criou o homem para introduzir no mundo a faculdade de começar: a liberdade. (2000:215)
Eis um tema interessante para aprofundar o estudo acerca das reverberações dessa noção de liberdade nas teologias contemporâneas. Mas, anterior a essa proposição de investigação, certifico que a elaboração dessa resenha, favoreceu, identificar ao menos três condições na minha experiência interna, que penso avaliar para o exercício da liberdade: a capacidade de querer agir, reconhecer quem está no controle, e saber quais são as razões pessoais para a ação.
Considerando, que uma teologia não deve abdicar da metafísica, nem da epistemologia e não ser só uma ética. Seguimos com as palavras de Jesus no Evangelho de Mateus 5:17 – “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir.” – Deste modo, na interpretação arendtiana: não se trata apenas de ‘Amar o próximo’, mas sim cumprir esse mandamento, da maneira mais radical possível, como explicitado no Evangelho de Lucas 6:27-31 – ‘Amai os vossos inimigos’; fazei o bem aos que vos odeiam; ao que te bate numa face, oferece-lhe também a outra, e, ao que tirar a tua capa, deixa-o levar também a túnica;   No que diz respeito ao querer, amplia-se a Regra de Ouro: ‘Não faças com os outros o que não queres que façam contigo.’; mas sim ‘Como quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles’. Vale lembrar que ninguém é livre sozinho, daí a pergunta no plural: Somos livres?
Referências:
A Bíblia da Mulher. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil. 2009.
Arendt, Hannah. O que é a Liberdade? In: H. Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva. 2000.
Arendt, Hannah. O querer (A Vontade). In: H. Arendt. A vida do Espírito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/UFRJ. 1992.
DeWeese, Garret J. E Moreland, J.P. Filosofia Concisa. São Paulo: Vida Nova. 2011.
Grudem, Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova. 2010.