Paul Ricoeur: o Mundo diante do Texto Bíblico

No tópico Os Intérpretes da Bíblia na Pós-Modernidade, Paul Ricoeur é apresentado no subitem intitulado Hermenêutica da Suspeita, no qual a suspeita é fundamental para chegar à compreensão do propósito do texto. Essa abordagem chamou a minha atenção e levou-me a leitura do livro A Bíblia e seus intérpretes: uma breve história da interpretação, do autor Augustus Nicodemus Lopes, que menciona, algumas ideias favoráveis ao pensamento de Paul Ricoeur e a crítica acerca de seu desejo de encontrar o sentido do texto bíblico no “mundo defronte do texto” (Lopes, 2013 p.237); Na tentativa de examinar um pouco mais as proposições de Paul Ricoeur, teço aqui meus comentários acerca desse tópico tendo como referência a obra de autoria de Paul Ricoeur, intitulada A Hermenêutica Bíblica (2006). Inicio esse breve exercício formulando a seguinte questão: qual a intenção de Paul Ricoeur ao propor a busca do sentido do texto bíblico no mundo defronte do texto, onde ocorre a interação entre leitor e texto?
Primeiramente, vamos conhecer um pouco sobre quem é esse autor. Paul Ricoeur nasceu em Valença, França em 27 de fevereiro de 1913 e faleceu com 92 dois anos em 20 de maio de 2005. Ele se apresentava “como alguém que professa um cristianismo filosófico”. Mas, o que isso quer dizer? Uma leitura atenta de sua obra mostrará o entrelaçamento das disciplinas filosófica e bíblica num enfoque direto ou indireto acerca da fé bíblica acompanhada pela questão religiosa; um exemplo disso é o seu estudo da polissemia dos símbolos e dos mitos religiosos. Ao analisar a linguagem simbólica, Ricoeur considera a exegese bíblica como o lugar de nascimento da hermenêutica no sentido de ciência da interpretação de um texto.
Um segundo aspecto que no auxilia a compreender a relevância dessa busca de sentido do texto bíblico está na interação do leitor com o texto. Na proposição de uma filosofia reflexiva do sujeito, Paul Ricoeur parte da intuição fundamental de que a existência humana é portadora de sentido, e procura traços desse sentido nas obras humanas que testemunham nosso esforço de existir e nosso desejo de ser. Com isso Ricoeur abre mão de dogmatismos, seja o autoritarismo político, seja a fascinação pelo saber absoluto. Rejeitando o obscurantismo intelectual e certas ontologias de inspiração hegeliana, escolhe a extensa rota do diálogo epistemológico com as contra-disciplinas inclinadas para as expressões do sujeito pensante.
Outro ponto que não podemos abrir mão nesse exercício é o contexto atual. Vale lembrar que em seus estudos, Paul Ricoeur reconhece quão difícil a Palavra de Deus atinge o homem de hoje, pelo fato de que a sensibilidade à linguagem simbólica degradou-se profundamente sob a influência da dicotomia entre a consciência soberana e o mundo objetivo manipulável. Ele indaga: como admitir que nessas condições a linguagem bíblica, cheia de expressões mítico-simbólicas, possa ter algo a dizer sobre a realidade? Sabe-se ainda que a heteronomia da Revelação vem aparentemente ameaçar a autonomia do indivíduo. Despontando nesse horizonte três pensadores desmitificadores, Freud, Marx e Nietzsche, denominados como os “mestres da suspeita”. Paul Ricoeur identifica que para esses três autores a linguagem bíblica podia ser somente uma transcrição codificada de algo outro que preferimos não dispor, o fruto de um tríplice mecanismo de dominação-submissão-alienação, ou a criação de uma consciência falsa, prisioneira de um absoluto ilusório. Considerando que para Ricoeur, nenhuma articulação autêntica da fé cristã possa prescindir da crítica impiedosa dos mestres da suspeita, ele responde a essas críticas apostando na fé, sustentando que o pressuposto de que os textos da pregação cristã são autênticos testemunhos da presença do absoluto na história e que o discurso religioso não é privado de sentido, que vale a pena ser examinado porque nele se diz algo que não é dito nas outras modalidades do discurso: discurso ordinário, discurso científico, discurso poético.
Um outro aspecto da busca de sentido do texto bíblico no mundo diante do texto é a interação do texto e o leitor. Vou aqui destacar que no funcionamento poético do discurso, Paul Ricoeur afirma que é o dinamismo criativo operando no texto-obra, metáfora, narrativa, e a imaginação na interpretação, que constituem os fios condutores de seu empreendimento. Em suas pesquisas o autor considerou o funcionamento poético do discurso bíblico sublinhando sua especificidade ao estudar os textos bíblicos de feição narrativa, legislativa, profética, apocalíptica e mítica em que o homem põe a nu sua finitude, choca-se com o mistério do mal, encontra a Transcendência e gera a esperança.
O estilo meticuloso de Paul Ricoeur diante do texto bíblico desdobra-se também no cuidado com a autonomia semântica do sentido textual, tendo em vista os distanciamentos sucessivos a respeito do autor e dos destinatários primeiros do texto. Paul Ricoeur demorou-se menos na gênese e nas condições de produção dos textos tanto do Antigo como do Novo Testamento, ocupando-se mais na capacidade “poiética” de produzir significações novas e a seu valor de “revelação”. Nessa sua análise, as metáforas e os relatos de ficção, os textos da Escritura têm condição de mudar a realidade porque lhe conferem uma configuração nova e a reescrevem através de seus modos de discursos contrastados. Na aplicação de suas pesquisas acerca do processo metafórico da linguagem às formas do discurso bíblico, Ricoeur notoriamente destaca a intransponível especificidade da linguagem da Escritura, mostrando o que nenhum outro discurso especulativo pode exprimir de maneira satisfatória. Por exemplo, a referência –Deus-Cristo-o Reino –, o jogo polifônico dos gêneros literários irredutíveis um ao outro e a extravagância de seu modo discursivo, notadamente nas parábolas, nos provérbios e nos dizeres apocalípticos.
No que diz respeito a relação da interpretação e a nossa questão inicial sobre a busca de sentido do texto bíblico no mundo frente ao texto, pode-se observar que Paul Ricoeur busca propor uma teoria englobante da hermenêutica dos textos que incluem também a linguagem religiosa. Para ele, interpretar um texto não se limita nem a captar a intenção do autor ou o pano de fundo histórico do texto – na perspectiva crítica bíblica tradicional – nem a apreender o jogo de significações internas ao texto sem nenhuma referência ao real fora do texto – como propõem vários leitores pós-modernos da Escritura. Para Ricoeur, a interpretação tem por fim compreender o mundo literário e teológico desenvolvido no texto. Ele não deseja sacrificar nenhuma dessas duas abordagens explicativas, mas antes articular uma à outra para preveni-las dos riscos que cada uma corre: a crítica histórica, do desinteresse pela matéria teológica do texto, e a poética pós-estrutural, de sua vontade anti-referencial. Sem sacrificar o momento da compreensão existencial que Paul Ricoeur chama de apropriação, para ele, a interpretação só está acabada se dá origem a experiências segundo as Escrituras.
Para concluir, saliento que ainda que seja difícil acompanhar o estilo desse autor e a expansão de suas pesquisas através da história da filosofia e das disciplinas científicas mais diversas, a vida de Paul Ricoeur mostra-o como um dos pensadores cristãos, que no âmago da modernidade corrosiva, testemunha que a humanidade é chamada pelo poder transformador dos textos da Bíblia, com isso sua obra relembra ao homem e à mulher contemporâneos a relevância do ato criativo, inspirado pelo Espírito Santo, na interpretação bíblica acompanhado de um testemunho constantemente renovado pela graça de Deus, talvez sejam esses dois aspectos chaves para compreendermos o sentido do texto bíblico no mundo diante do texto.